MÃE VISITANTE: OS DESAFIOS ENTRE A INGENUIDADE, ESPERANÇA E TRAIÇÃO.
- Marroca Infos Prisionais
- 15 de set.
- 7 min de leitura
Atualizado: 25 de set.
Outros Olhares é um editorial que apresenta a situação prisional a partir de outros atores para além da figura do presidiário. Hoje vamos apresentar o drama de uma mãe que recebe uma inesperada ligação sobre uma ocorrência envolvendo o filho. Ao descobrir que seu primogênito está preso, passa a suspeitar que houve algum erro policial. Com o tempo, encara o drama prisional e passa a conviver com a realidade social de ser “mãe de marginal”. A trajetória dessa mãe, é a realidade indesejada de muitas outras mães, acompanhe o depoimento que ela concedeu ao time da Marroca Conteúdo Prisional.
FILHO BALEADO:
CENÁRIO ESTRANHO PARA QUEM FOI VÍTIMA DE ALGUM ACIDENTE.
Não sei bem por onde começar, mas acho que o certo é começar pelo dia que o meu mundo desabou. Numa tarde de trabalho, por um telefonema fui informada de que meu filho havia sido baleado. E junto com a informação me passaram o local da ocorrência e outras informações que não memorizei.
Muito assustada e ainda sem entender a real situação, pensei em coisas trágicas e acidentais, a primeira coisa que me passou pela cabeça, devido ao cenário violento da cidade do Rio de Janeiro, foi que ele havia reagido a um assalto. Depois, cogitei que ele pudesse ter sido vítima de alguma bala perdida.
Quando estava pegando minhas coisas na mesa do trabalho, avisando a minha chefe e seguindo para encontrá-lo, pedi a pessoa que me ligou para socorrê-lo, arrumar algum transporte e levá-lo para o hospital, eu estava a caminho.
Ela então me respondeu:
- Não dá, não estão deixando socorrer ele, eles querem que ele morra!
Como assim? Perguntei,
- A polícia não deixa socorrer!
APESAR DE BALEADO, ELE NÃO ERA A VÍTIMA
Nesse momento eu já não sabia o que pensar, só queria chegar para socorrer! Eu já estava a caminho do local quando recebi a informação que ele tinha sido colocado numa caçamba de viatura e estava a caminho do hospital, mudei meu trajeto e fui direto pro hospital, cheguei primeiro e presenciei meu filho ensanguentado sendo retirado como um animal daquele carro, tentei me aproximar, mas fui impedida por um policial que me dizia que eu vivia do dinheiro do tráfico!
No meio daquela confusão eu só queria saber se ele ficaria bem! Graças a Deus o médico me chamou e disse que por muito pouco a femoral não foi atingida, que ele ficaria bem. Aos poucos a ficha foi caindo que ele não estava ali como um simples paciente acidentado, vítima de bala perdida, e para afugentar minha ingênua crença fui informada que ele estava preso, na condição de criminoso!
SINTOMA DAS DORES:
O SENTIR POR SER MÃE, E QUERER ESTAR AO LADO:
O DRAMA DAS VISITAÇÕES
Eu só conseguia lembrar daquele menino brincalhão e alegre que todos gostavam, adorava futebol e crianças, meio rebelde, mas sempre muito divertido e cativante. Ainda sem ter noção da gravidade do caso, naquele momento eu não tinha a menor noção do que viria pela frente.
Foram ainda duas noites visitando às escondidas no hospital de madrugada até quando foi transferido para Cidade da Polícia, onde também estive. E por coincidência do destino, o policial do local em que foi levado o conhecia desde criança (fomos vizinhos), o mesmo estava incrédulo, me disse pra comprar um lanche e me permitiu falar com ele, dentro de uma cela, um local assustador.
Apesar dos desafios emocionais e toda situação assustadora que envolve a prisão, eu não imaginaria que as coisas ficariam piores, e ficaram. Foram se cumprindo os trâmites: Ele foi transferido para uma cadeia de triagem e recepção, que é em Benfica, onde passei dois dias na calçada aguardando a Audiência de Custódia, que não aconteceu. Só depois de quase 72 horas a audiência aconteceu e no fim de semana ele foi transferido para o Complexo Penitenciário de Gericinó, ambiente prisional que passamos muitos anos juntos.
Eu não fazia ideia de nada que vinha pela frente, jamais havia conhecido alguém que passou por essa situação e muito menos imaginava viver tudo isso! Fui atrás de advogado, segui as instruções, mas aquela angústia me atormentava dia e noite! Passei por todo processo burocrático para fazer a carteirinha e poder visitá- lo.
VISITA É A PUNIÇÃO DO INOCENTE:
A SENTENÇA PELO CRIME NÃO COMETIDO.
Enfim chegou o dia da primeira visita, e o pior ainda estava por vir, quando entrei naquele lugar eu senti o meu corpo tremer da cabeça aos pés, eu chorava compulsivamente com um nó na garganta que me sufocava, fui amparada por outros detentos, até a hora que meu filho chegou no pátio, a sensação era de que eu preferia estar morta a estar passando por esse momento. E por inúmeras vezes me senti tão culpada por ter deixado meu filho ser preso, como se o erro ou crime fosse o de eu ser mãe.
A hora de ir embora foi tão difícil, saber que aquela pessoa que eu cuidei desde o primeiro dia de vida não me pertencia mais e que eu nada poderia fazer, deixá-lo naquele lugar lotado, imundo com aquelas pessoas desconhecidas, a impressão é que a cada etapa que eu ultrapassava, a ficha ia caindo e tudo só piorava.
OUTRA CONDENAÇÃO:
A DOENÇA E O INTENTO SUICIDA
Veio a depressão, a vontade de acabar com tudo e não ter mais que viver esses momentos, ao mesmo tempo eu me obrigava a pensar nos meus outros dois filhos, minha fuga por um tempo foi me entupir de remédios pra dormir, pelo menos enquanto eu dormia eu não faria nenhuma besteira eu só perguntava a Deus o porquê disso tudo, onde eu havia errado. Aconteceu o julgamento e mais uma vez eu fui ao fundo do poço quando ouvi a sentença de 10 anos e 4 meses no regime fechado! Achei que não suportaria tanto tempo!
Fui seguindo a minha vida, sempre com esse vazio.
QUEBRA DE PARADIGMAS: NA TRANCA A REALIDADE É OUTRA
Fui seguindo nessa vida, visitando quando podia, fui entendendo o grande comércio que é a prisão, fui vendo o agente da lei ser tão bandido quanto os presos e infelizmente participando de tudo que faz parte do jogo. Na cadeia, desde o luxo até os itens básicos de higiene têm seu valor.
Na rotina de visitas eu vivenciei algumas coisas que me chamaram atenção, percebi que dentro de uma cadeia havia muito amor, eu sempre reparava nos olhares e abraços que o preso dava em seu familiar quando ele chegava, certos abraços tinham tanto carinho que transbordava!
Não podia deixar de reparar que lá dentro existe uma hierarquia entre os presos, e até mesmo alguns tinham mais autoridade que as autoridades penais.
Lá dentro tive uma outra visão do preconceito, da minha parte desmistificando a visão do marginal (afinal eu passei a ser denominada como mãe de marginal), lá dentro eu via pessoas de “alta periculosidade” sentados comigo à mesa, conversando, rindo, contando histórias, e até compartilhando Ceia de Natal, tudo isso várias vezes, por alguns anos consecutivos.
Via o preconceito na sua forma mais covarde toda vez que mulheres negras e aparentemente com pouca condição financeira tinham seus alimentos brutalmente esmagados na revista enquanto mal mexiam no meu, já fui questionada por um policial da revista o que eu estava fazendo ali, que claramente não era o meu lugar, eu não sei se a intenção era constranger mais as outras mulheres ou a mim.
“QUEM NÃO ESCUTA CUIDADO, ESCUTA COITADO”
Passei por 6 anos e 4 meses difíceis, muito desgaste, muita tristeza, aquele lugar era um depósito de gente que passa a maior parte do tempo no ócio. Mas em todas as visitas conversávamos muito sobre assuntos diversos, da vida aqui fora, da vida lá dentro e assim os anos foram se arrastando até chegar o momento do primeiro benefício concedido para visita periódica ao lar, eu sempre conversando com ele, lembrando que seria uma breve visita e teria que voltar por mais difícil que fosse, deveria fazer o certo porque o sofrimento estava chegando ao fim. Momentos que se aproximam do direito à Saída Temporária, são desafiadores. Alguns visitantes mais experientes, recomendam cautela, pedem para que tenhamos cuidado, afinal são anos de privação de liberdade e sofrimento, e a saída configura alívio, ainda que temporário, é um alívio.
SERÁ QUE EU NÃO CONHEÇO MEU FILHO?
Mais uma vez me sentindo apunhalada, traída e impotente, foi assim que recebi a notícia que ele não voltaria do benefício para acabar de cumprir a pena imposta! Aquele sentimento de fracasso tomou conta de mim novamente. No dia que soube da sua prisão, de forma ingênua imaginei que fosse algum erro de informação, equívoco ou coisas do tipo. Durante o cumprimento da sentença, cuidei, estive ao lado e acreditei na mudança, na retomada dos trilhos e no compromisso entre mãe e filho. Não esperava por mais uma decepção. Se a primeira foi uma tragédia, a segunda me parecia uma farsa, como se estivesse sendo usada até conseguir a saída.
ENTRE AS DORES, AS LIÇÕES
A palavra presídio me remete aos mais de 6 anos que vivenciei, vi, ouvi e senti coisas que fazem parte de um mundo totalmente diferente do que eu conhecia até então. Pensar que tudo isso foi em vão me traz uma tristeza profunda, um sentimento de derrota, fracasso mesmo.
Durante essa caminhada surgiram diversas questões no que diz respeito à vida no presídio, um misto de sentimentos e emoções, mas o que me chamou mais atenção era estar num local de segurança máxima, com pessoas que são abominadas por praticamente toda a sociedade e vivenciar o amor, eu admirava os abraços cheios de amor que eram dados na visita, dava pra perceber no olhar o carinho entre o familiar e o preso, acho que essa era a parte boa, o amor recompensando todo o sacrifício que era feito para chegarmos naquela visita levando tudo que preparamos com muito carinho.
Não sei se viverei tudo isso novamente, ele segue foragido. Nunca sei o que há de ser no próximo telefonema, ou em que momento serei surpreendida, mesmo que esteja esperando por algo que não seja bom. Não espero nada, espero tudo. Nunca se sabe, eu não sei. Como mãe, eu sobrevivo, e tudo isso depois de tantos anos de prisão.
FOTO: AKIRA ONUMA / ASCOM SUSIPE DATA: 12.05.2018 MARITUBA - PARÁ



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